Eu agradeço.

 Eu agradeço à minha história. 

Agradeço à falta de acolhimento.  Agradeço a toda dor que trago comigo desde que me entendo por gente. Agradeço ao vazio, à falta, ao caos, ao desespero que carrego dentro de mim todos os dias. Agradeço nunca ter conseguido superar minhas "brisas psicológicas" para poder viver uma vida comum. Agradeço à toda dor que sinto no meu corpo diariamente, no rosto, na mandíbula, no peito asmático, nos quadris, nos pés e mãos atrofiadas, às horas me mastigando, me arranhando, me cortando, desejando não existir. Agradeço à toda dificuldade que tenho para falar, para expor o que eu penso. Muito obrigada. Muito muito muito obrigada por nunca me deixar me convencer de que isso tudo "não é nada". Por me fazer perceber que tudo isso merece muita atenção e cuidado.

Agradeço à todo sofrimento que eu sinto ao existir. Desde pequena, tentando deixar de existir. De diferentes e distintas formas, de sintoma em sintoma, sempre mudando de padrão, mas com o mesmo fundo. Desde deixar de comer e definhar a buscar incessantemente acolhimento nas drogas. Desde não desejar fazer nenhum outro amigo (pois existir na frente deles era difícil) até oferecer para meus pais um contrato de convívio (eu não conseguia entender o que eles queriam de mim). Desde me fechar ouvindo músicas pesadíssimas para soltar a raiva a trabalhar de graça num hostel ou morar com pessoas que nem conheço apenas para me sentir pertencente.

Desde criança o assunto morte (ápice máximo do deixar de existir) me ronda. Chegava a comentar com animação como seria o dia em que eu morreria e que iria "finalmente ter todas as respostas" sobre a existência. Desde quando eu afirmava que já sabia como eu morreria. Claro que eu tinha certeza como seria, pois sem saber eu já estava vivendo aquilo, eu já me sentia morta. Eu ia morrer de uma maneira que eu já conhecia muito bem: sem ar. O ar que sempre me faltou para respirar, para me sentir digna de existir, me sentir acolhida, calma. Nunca tive ar para me expressar, para existir num ambiente onde tudo era violento, relapso, agressivo.

Agradeço à imperfeição dos meus pais. Agradeço poder perceber o sofrimento naqueles que deveriam ser meus heróis. Percebo o desespero que eles trazem, a falta de respostas, a dor de tentar ser humano. A dor de se fazer tudo que se é esperado e ainda assim, ser mastigado e cuspido pelo mundo. Só assim eu percebi que os outros não agem como a gente pensa que é o correto. Somos nós que devemos ser esses outros para outras pessoas. Obrigada por toda dor. É nela que eu vou me focar: não na minha, mas na dos outros. Sendo quem eu gostaria que tivessem sido comigo.

Eu agradeço sentir tudo isso de maneira tão forte, tão presente, que não consigo ignorá-la. Ontem foi um dia difícil, daqueles onde eu queria desistir. Estar viva sempre me pareceu muito muito muito absurdo. Uma piada de mal gosto, até. Lançar a gente aqui nesse mundo onde reina o sofrimento, o adoecimento, a morte. Eu nunca entendi o porquê de se passar por tudo isso se o fim é certo.

E aí me veio um pensamento muito forte: "você vai desistir então? Tem certeza? Justo agora que você caminha para contribuir ao invés de receber? Justo você, que tem os meios para ajudar? O financeiro, o tempo, a vontade... Vai desistir mesmo?". 

Agradeço à todo sofrimento de existir. Eu tentei muitas vezes (e ainda tento) não existir. Muitas e muitas vezes, de diferentes formas. De sintoma em sintoma, eu fui mudando de padrão, mas o sentimento era sempre o mesmo. Desde deixar de comer a buscar incessantemente acolhimento nas drogas. Desde desejar morrer quando criança a afirmar com certeza como eu morreria. Afinal, eu já estava morta, eu já me sentia morta. Então sim, eu tinha certeza como eu iria morrer: sem ar. Eu já estava sem ar: literalmente e figurativamente. Sem poder me expressar, sem me sentir pertencente, num ambiente onde tudo era violento, relapso, agressivo. Eu já me sentia sem ar, sem existir, morta. Só faltava mesmo o mundo material perceber e me ajudar nisso.

Desde que eu existo, eu trago comigo a rejeição e falta de acolhimento. Desde quando minhas primeiras células se desenvolviam, já muitas pessoas desejavam que eu não existisse. Apenas hoje eu sei disso. Imagina tudo que não sei ainda?

Toda essa falta, essa dor, fez uma chavinha virar em mim. Eu sempre busquei formas de me completar, de me preencher, de ser alguém ou alguma coisa. Tudo girava em torno do que eu faria com a minha vida, comigo mesma, quem eu seria? Eu sempre tive essa dúvida existencial, fazia todos os testes da Capricho pra descobrir: quem sou eu? Tantos os livros sobre personalidade que já li e reli buscando uma resposta sobre mim. Quem era eu além da dor?

Só ela me faria abrir os olhos para ver como essa falta pode impactar uma vida. Abrir meus olhos para ver como a dor pode ser tão dilacerante que nada consegue ser mais importante que ela, nada nada nada, absolutamente nada tira o meu sono como essa dor.

Obrigada por me fazer sensível o suficiente para nao conseguir superá-la, para não conseguir ignorá-la. Obrigada.


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