Ana Rubo Negro

Laura Callaghan
Ana passeava cabisbaixa pela rua de sua casa. Havia recebido de seu noivo um tapa forte no rosto, e nada podia fazer contra aquilo. Estava marcada com o roxo do tapa e o vermelho da maquiagem borrada. Se perguntava se um dia deixaria de sentir que, por mais que pensasse ser livre, seu voo mais alto na realidade ainda era baixo. Seus esforços para sentir-se livre não chegavam perto de serem eficazes. O que fazia ela ali no último degrau dos seres humanos?
Lembrou-se de sua família e se perguntou se um dia seria seu orgulho, se seria possível não ferir sua honra por ser tão somente ela mesma. Queria somente ser. Não via o problema em ser diferente. Ser, sem ofender ninguém com sua essência. Era pedir demais?
Refletindo sobre sua própria condição, imaginava se realmente um dia as mulheres chegariam a ter o mesmo valor na sociedade que um homem. Não quis enganar-se e pensar em igualdade. Não queria ser igual a ninguém. Pedia apenas valoração. Respeito. Como havia sido lhe ensinado que essas coisas eram o mínimo que se deve a outro ser humano. Por que então não recebia essas virtudes dos demais?

"Foi numa segunda-feira chuvosa que ele esperou Ana Rubo Negro sair para arrumar suas coisas, apanhar todo o dinheiro guardado embaixo do colchão e escrever num pedaço de papel de pão: "O nosso caso está terminado, desculpe o mal jeito. Assinado, Pouca Sombra".

Ana Rubo Negro, ao ler aquilo, sentiu frio. Frio de dormir só nas noites de inverno que se aproximava; frio de não ter mais marido para matar baratas, das quais ela tinha tanto medo e nojo; frio de ter de cozinhar para comer sozinha; frio de não ter mais ninguém para trazer presentes. O frio da solidão.

Andou de cabeça baixa por todos os cômodos da casa, observou o lugar do guarda-roupa onde Pouca Sombra guardava as suas roupas: vazio. As lágrimas tiravam o pó-de-arroz daquele rosto de palhaço triste; jogou-se na cama soluçando em silêncio, silêncio que sempre acompanhava de modo imperativo a vida de desprezo e discriminação na qual sempre vivia se ocultando, chegando depois de tudo terminado, recebendo olhares de nojo, apanhando da polícia. Tudo vinha à sua mente naquela hora(...)

Por que seu desejo tinha de ser tratado como uma coisa suja, escondida e vergonhosa? Seu rosto sério, olhando para si mesmo, se perguntava: 'Quem é você? Que mais você queria além da solidão? Vamo, se joga na cama e sofre aí em silêncio que amanhã você se reacostuma com tudo. Nada de novo irá acontecer'(...)

Resignação, solidão, ódio, medo. Juntou esses sentimentos que estavam trancados em seu quarto e os jogou pela janela, vestiu-se de modo provocativo, pintou-se e foi à feira comprar galinha."


  - Cidade de Deus, Paulo Lins.


Esse texto faz parte do projeto Mais Que Palavras e é uma homenagem ao Dia Internacional da Mulher. Faça parte do projeto você também procurando-nos pela blogosfera/facebook!

20 comentários

  1. Li exatamente tudo o que queria ler nesse momento. E é exatamente isso. Se valorizar para depois valorizar o próximo. Temos que saber quando o outro está errado em certas ações e valorizar a nós. Não aguento mais abaixar a cabeça enquanto o outro se faz de vitima e me coloca como "a errada", isso não tá certo. Sério. Amei o texto!

    Beijos!
    www.likeparadise.com.br

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    1. <3 exatamente ! temos que analisar situação por situação e não nos sentirmos vitimadas e rejeitadas sempre. Um beijo!

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  2. QUERO MUITO JOGAR MEUS SENTIMENTOS PELA JANELA e ser uma pessoa melhor, não ficar carregando bagagem negativa e coisas que me incomodam, isso ia me ajudar muito a seguir. O texto é incrível <3


    Beijos
    Brilho de Aluguel

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    1. Espero que você consiga jogar pra fora todos esses sentimentos !! Um beijo

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  3. Acho que todas nós, vamos nos identificar nessas palavras.
    Adorei :*

    http://metadedascoisas.blogspot.com.br

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  4. Que bacana entrar aqui e me deparar com esse baita texto. É tão bom escrever sobre as mulheres, né? Principalmente sobre as mulheres que sofrem, sobretudo, por serem mulheres. Só isso. Também escrevi algo em homenagem ao dia da mulher, que vou publicar no próprio dia. É incrível como isso meche com a gente, né? Eu mesma não consigo escrever algo assim sem me sentir invadida por uma tristeza profunda, por causa de toda essa injustiça e falta de igualdade de fato. Enfim, gostei muito do teu texto.
    Beijo, Bruna S. ♥
    Chanel Fake Blog

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    1. Exatamente, é incrível como esse assunto sempre vai mexer com a gente. Somos injustiçadas e desvalorizadas por somente SERMOS MULHERES e não sei como isso é ainda aceitável em pleno século XXI. Um beijo

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  5. Adorei conhecer o projeto, e o texto. No começo não pude deixar de me sentir triste, mas o final me fez abrir um sorriso. <3

    www.tendamagica.com

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    1. =D que bom que o texto teve um efeito positivo em vc! Um beijo

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  6. Oi!

    Que texto mais... profundo! E é com pena que sabemos que sim, é a realidade de muitas mulheres hoje em dia. Adorei o projeto e o ato de postá-lo.

    Beijos
    www.carolice.com

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    1. Obrigada ! Realmente, me deixa triste que ainda passemos por esses tipos de situações.... quem sabe um dia não seremos valoradas como merecemos !! Um beijo

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  7. Que legal, bem profundo o texto. Precisamos nos valorizar mas.
    Feliz dia da mulher para todas nós antecipado.

    http://www.eriikaleao.com.br/

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  8. Oi amore,
    Me identifiquei bastante com o texto. Bem profundo, e essa é a realidade de muitas mulheres nos dias de hoje, fico muito triste com essas situações.
    Ótimo texto!
    Beijos,
    www.blogdavivinh.com.br

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  9. uqe texto mais maravilhoso e que projeto lindo!!
    é tão bom ta de boas pelos blogs e encontrar um post desses
    (apesar d eque tb é sempre um soquinho no estomago, um tapinha na nossa cara)

    bjss
    http://gipsyyy.blogspot.com.br/

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  10. Maravilhoso! Fiquei totalmente presa ao texto e adoro isso!
    Puxa, que escrita boa. Agradeço a visita no meu blog.
    beijos

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  11. Adorei o projeto, é uma otima ideia \o
    Esse texto ficou incrível
    www.iamcamilakellen.blogspot.com

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  12. A personagem, pelo que vi, vivia numa contradição... Uma vontade enorme de ser livre, proporcional ao medo de se ver sozinha. O interessante é que essa contradição é, justamente, o que impede que muitas mulheres que são agredidas por seus parceiros os abandone. Claro que também há o medo, e a vergonha... Há muito. Mas há, mais do que tudo, a necessidade de que essa triste realidade acabe de uma vez por todas.

    Jeito Único

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  13. Gostei muito do texto!
    Adorei o seu blog
    Estou seguindo, se puder me segue?
    Instagran: @luanacarvalhoi
    http://meuestiloe.blogspot.com.br/
    Beijinhos.

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  14. Muito bom o texto!
    Às vezes, esvaziar a alma para que novos (e melhores) sentimentos entrem faz bem!
    Abraços Mika,
    Pensamentos Viajantes

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